Por Bernardo Aurélio de Andrade
Oliveira[1]
Resumo:
Este trabalho aborda como o desenvolvimento da história cultural e o
ressurgimento da importância das narrativas influenciam a produção do texto
histórico e de que forma a linguagem científica se relaciona com o texto
artístico. Partindo deste princípio, foi possível analisar a construção do
discurso e as escolhas do autor ao narrar um fato histórico a partir da
construção de uma história em quadrinhos (Foices
& Facões: A Batalha do jenipapo), apontando em que medida e de quais
formas um historiador se permite dialogar com a arte.
Palavras-chave:
história cultural, arte, literatura, ficção histórica, história em quadrinhos.
“A história é um romance real”
Paul Veyne
1. A história cultural e
a subjetividade do narrador
Para iniciar essa
discussão em torno das relações que existem entre a história e a arte, que será
exemplificada aqui através da adaptação de um fato histórico para história em
quadrinhos na obra Foices & Facões: A
Batalha do Jenipapo[2], é
preciso uma breve introdução historiográfica. Espero não me estender além da
conta sobre esses pontos, mas não poderíamos tatear no escuro, isso por
entendermos que é necessária uma explanação sobre o que é a história cultural
antes de dialogarmos com o que seria uma ficção histórica e arte.
A história cultural
de hoje é fruto de uma construção, inicialmente, mais voltada para o campo
econômico e social, que ganhou força e popularidade depois da crise de 1929
devido à publicação da revista Annales d´histoire économique et sociali,
lançada por Lucien Febrev e March Bloch, considerados representantes da
primeira geração da École des Annales.
O princípio desse movimento era se opor à história meramente
política e factual dos pensadores marxistas e positivistas. Os outros
historiadores que se uniram aos editores dessa revista passaram a se aproximar
cada vez mais de um movimento interdisciplinar, buscando parcerias entre
história e outras áreas do conhecimento.
A nova história é a história escrita como uma reação
deliberada contra o “paradigma” tradicional (...). Será conveniente descrever
este paradigma tradicional como “história rankeana”
(...) Poderíamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da
história, ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis
do passado (BURKE, 1992, p. 10).
Ao longo das gerações seguintes às de Febvre e Bloch, o
campo histórico foi se abrangendo e os objetos históricos sendo reconfigurados.
A ideia de uma história total (não no sentido de uma história que conta tudo
plenamente, mas que se interessa por todo o produto da atividade humana) foi
consolidando a percepção de que tudo possui uma história que pode ser escrita,
um passado que pode ser vasculhado, inclusive no campo imaterial, como as
próprias “ideias”, surgindo então a possibilidade de uma história das
mentalidades. Nesse ponto, o cruzamento da história com a antropologia foi
fundamental. O estudo antropológico do comportamento humano e sua concepção do
que é a cultura permitiu ao historiador observar um campo de objetos de estudos
praticamente sem fim.
A história cultural passa a buscar outras fontes e não
apenas os documentos que expressam pontos de vista oficiais. A nova história
preocupa-se com uma variedade de evidências das mais diversas, como tradições
imateriais e a própria oralidade. Tudo isso colocou em xeque a cientificidade
da evidência e do ofício histórico em comparação aos métodos dos profissionais rankeanos que buscavam a objetividade.
De acordo com Georges Duby “a ideia de verdade em história modificou-se porque
o objeto da história se deslocou, porque a história passou a se interessar
menos pelos fatos que pelas relações” (1993, p. 59). A história cultural
considera as diversas possibilidades de interpretação e de percepção da
História, numa busca muito maior pela verossimilhança do que pela verdade dos
fatos, portanto, ela afasta-se do ideal científico de apresentar ao leitor o
que “realmente aconteceu”, como pretendiam os positivistas e marxistas,
entretanto:
(...) não podemos evitar os preconceitos associados a cor,
credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista
particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria
escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem
diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de
convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura
para outra. (BURKE, 1992, p. 15).
Então, a objetividade histórica passou a ser questionada
devido a essa nova interpretação do campo e dos objetos históricos. Os
historiadores começaram a criticar nos textos de seus próprios colegas essas
“convenções” de que nos fala Peter Burke, esses pontos de vista particulares.
Assim, parte do ofício do historiador acaba se tornando subjetivo, na contramão
do que prega os princípios da cientificidade do século XIX. Ou seja, a
história:
(...) afastou-se
dos ideais de ciência dura e reorientou-se para veio tão aberto que se permitiu
denominações sugestivas como História do Cotidiano, História das Mentalidades,
História das Sensibilidades, ficando em segundo plano as tradicionais história
política, econômica e demográfica. Firmou-se a expressão “crítica cultural”
para definir a atividade do estudioso que busca seu instrumental em campo amplo
e variado, superando o enrijecimento de conceitos, de formas e de manifestações
que caracterizou os estudos humanísticos de meados do século XX (WEINHARDT.
2002. pg. 109).
Michel de Certeau observa que essa tentativa de reconstrução
da verdade objetiva no discurso histórico através de uma prática, teoricamente,
funcional e exata, tornou-se ultrapassada e obsoleta justamente porque a
subjetividade na construção do discurso organiza a realidade quase que à sua
revelia:
Há quarenta anos, uma primeira crítica do “cientificismo” desvendou
na história “objetiva” a sua relação com um lugar, o do sujeito. Analisando uma
dissolução do objeto (R. Aron), tirou da história o privilégio do qual se
vangloriava, quando pretendia reconstruir a “verdade” daquilo que havia
acontecido. A história “objetiva”, aliás, perpetuava com essa ideia de uma
“verdade” um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem;
contentava-se com traduzi-la em termos de “fatos” históricos... Os bons tempos
desse positivismo estão definitivamente acabados. Desde então veio o tempo da
desconfiança. Mostrou-se que toda interpretação histórica depende de um sistema
de referência; que este sistema permanece “filosofia” implícita particular; que
infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-o à sua revelia, remete à
“subjetividade” do autor (CERTEAU, 2006, p.67).
Essa subjetividade ainda causa desconforto entre
historiadores que buscam exatidão científica e isenção ideológica em seu
ofício. Para reforçar essas ideias, Michel de Certeau, em A Escrita da História, debruça-se sobre três variáveis que
influenciam diretamente esse fazer histórico: 1) o lugar social; 2) a prática
do historiador que artificializa a natureza e 3) a escrita: “a operação que faz
passar da prática investigadora à escrita (...) pois a fundação de um espaço
textual provoca uma série de distorções com relação aos procedimentos de
análise” (2006, p. 94) no ofício de fabricação de um conhecimento histórico.
Esses três tópicos, que são também condições inerentes ao fazer histórico,
estão intrinsecamente ligados: “de fato, a escrita histórica permanece
controlada pelas práticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela própria
é uma prática social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado”
(CERTEAU, 2006, p.95).
Mais adiante, vamos entender de que
forma a plasticidade da escrita influencia na elaboração do conteúdo histórico,
principalmente quando estamos considerando uma linguagem artística como meio de
comunicar essa informação. Trocando em miúdos, vamos entender como a linguagem
das histórias em quadrinhos pode favorecer o conteúdo histórico e vice-versa.
2.
O retorno da narratividade para a história.
A partir da segunda
metade do século XX, historiadores procuraram se tornar melhores narradores e
isso só aconteceria se se afastassem do modelo rankeano, como diz Luiz Costa Lima, concluindo que o surgimento das
teses narrativistas é uma reação negativa ao cientificamente saturado ambiente
acadêmico norte-americano:
(...) em um
ambiente acadêmico saturado de modelos de cientificidade, como era o dos
departamentos norte-americanos de ciências sociais, nas décadas de 60 e 70, o
desafio lançado aos pensadores da história era o da adequação de sua disciplina
à exigência científica. (...) a tematização contemporânea da narratividade, em
vez de representar um revival, é uma
resposta negativa, muitas vezes embaraçada, à demanda de uma história de fato
científica. (LIMA apud WEINHARDT. 2002. pg.112).
No início de minha
experiência acadêmica, presenciei debate acalorado de professor reiterando a
cientificidade da prática histórica diante de um discurso cada vez mais
presente da subjetividade na prática historiográfica. “Vocês estão numa
universidade. Vocês fazem ciência!”, disse, certa vez, aquele professor. É
inegável que existe um modo de fazer, um método científico de coletar dados e
averiguar informações: a prática, enumerada por Certeau como um dos elementos fundamentais
na construção histórica. Acontece que, ao longo do século XX, com a proximidade
da antropologia, com a afeição
pelo estudo das mentalidades, com a história lançando-se ao infinito mundo das
possibilidades temáticas culturais e com todas as inovações advindas a partir
do processo de virada linguística, onde “em
certo sentido toda pessoa está limitada pela linguagem[3]”,
tornou-se cada vez mais difícil, para o historiador, apresentar-se como uma
figura isenta de um pesquisador científico.
Diante de todas essas inovações e novas percepções, aceitar a condição
de que historiadores são também ficcionistas tornou-se um novo paradigma que
precisava ser aceito a partir da definição das fronteiras entre o que é arte e
o que é história. E é exatamente no metiê
dessas duas áreas do conhecimento que se configuram as diferenças: existem
métodos para a história e para a literatura e, eventualmente, esses modos de
fazer podem e devem dialogar entre si.
É importante lembrar, entretanto, que qualquer texto historiográfico é
um tipo de literatura, mesmo aqueles mais sisudos e, evidentemente, existe
público para eles textos. Certa vez, em sala de aula, um colega falou que
sentia muito mais prazer lendo um texto objetivo, direto e claro, provindo de
uma escola marxista tradicional, do que qualquer texto mais rebuscado, ou
estiloso, fruto de influencias da escola dos Annales. Existem, evidentemente, preferências linguísticas.
Entretanto, quando aponto uma proximidade maior entre história e
literatura, falo da necessidade da construção da narrativa histórica a partir
de recursos advindos da arte, da poética,
como os antigos faziam na Grécia, e não apenas a partir da simples constatação
de que história é também linguagem. Quer dizer, qualquer texto de linguagem
marxista é também literatura, mas a perspectiva artística na elaboração do
texto histórico que defendo é um pouco diferente. Vamos tomar como exemplo uma
obra fundante da historiografia brasileira que é Capítulos da História Colonial (1907), de Capistrano de Abreu.
Capistrano de Abreu preocupou-se em compreender o Brasil a
partir da construção dos sertões de dentro e fez um livro pequeno e enxuto:
Não é um livro que se compara; é um livro que se distingue
na historiografia brasileira, escrito numa linguagem simples, branda, enxuta,
onde havia doutrina que persuadia, compreensão que se fazia perceber e novidade
apertada, colhida na vastidão sem fim de suas pesquisas. Não acumulava fatos,
mas com sua intuição compreendia os homens e suas atividades, tornando vivo o
recontamento.
A história não é só fato: é também a emoção, o sentimento e
o pensamento dos que viveram (...) Os sentimentos, as especulações, os
pensamentos do povo, suas aspirações são uma coisa que nunca se repetirá, que
viveu e que interessa ao historiador tanto quanto aos fatos materiais
(RODRIGUES. 1969, p. 29).
Então, o método aplicado por
Capistrano antecipou em muitas décadas aquilo que só começaria a si consolidar
a partir década de 1960 através da Escola dos Annales. De acordo com
José Honório Rodrigues, Capistrano já não valorizava tanto o paradigma
cientifico da história factual e seriada das escolas tradicionais materialistas,
procurava libertar-se das datas, nomes e cronologia que sufocavam mais que
informavam nesses estudos de grossos e vários volumes, como os de Adolfo
Varnhagen (1969, p. 30). Para ele, valia mais a capacidade da síntese,
preocupado em entender um tempo longo, de proporções psicológicas que revelasse
e permitisse compreender internamente o sentimento do povo. Era fundamental
para Capistrano de Abreu considerar a longa passagem dos tempos (assim mesmo,
no plural: "tempos") e “pela primeira vez apresentava-se uma
concepção psicológica do suceder histórico e se revivia a vida da alma popular”
(1969, p. 33).
Seria errado dizer que Capistrano
era um subjetivista que não se preocupava com os fatos como realmente
aconteceram por se dedicar mais à compreensão do tempo de longa duração e
psicológico, ou por “colocar-se em simpática comunhão com o espírito dos atores
e autores do drama, reconstruir o processo do pensamento, penetrar as
conclusões e motivos que ditaram a ação e fizeram acontecer o acontecimento”
(RODRIGUES, 1969, p. 35).
Esse preocupar-se com a síntese das ideias, com as mentalidades e com a
longa duração dos processos históricos é uma forma de fugir da literatura
histórica rankeana e de aproximar-se,
de fato, de uma literatura histórica mais literária, artística. Essa capacidade
de abstrair o sentimento e o espírito do tempo de uma maneira mais atraente que
a contumaz concatenação de documentos, dados, datas e nomes é o princípio
básico que permite ao historiador dialogar com uma linguagem mais artística. É
preciso que o historiador que quer descobrir ou praticar uma narrativa mais
passional encontre essa capacidade de síntese psicológica dos atores do
processo histórico. É preciso entender as personagens e descrever bem seus
dramas e cenários.
3. A construção da ficção
histórica em Foices & Facões - A
Batalha do Jenipapo
Qualquer dicionário irá
lhe informar que ficção é uma
elaboração, uma criação imaginária, é fruto de um ato criativo. A princípio,
pode parecer estranho a afirmação de que toda história é uma ficção,
entretanto, é a mais pura verdade. Os objetos ou documentos não falam por si,
não interagem ou dialogam, eles necessitam de ser elaborados, só assim a
história é modelada, ficcionada. Nesta perspectiva, a história é tecida por um autor,
é fruto de uma imaginação capaz de ligar os fatos e elaborar um longo texto
dedutivo que frui das informações adquiridas na realidade.
A grande questão que
diferencia a ficção histórica da ficção artística ou literária é a tênue e
longa fronteira entre o que é real e o que é fantasia, que são as matérias
primas dessas duas construções narrativas.
Hayden White, um
dos nomes mais citados quando se comenta o papel do historiador e do
ficcionista, figurando entre os principais desencadeadores desse debate,
posiciona-se radicalmente, restringindo as diferenças ao conteúdo e anulando a
distinção formal ente a narrativa histórica e a ficcional. Ensina que a
primeira se constrói sobre fatos reais, a segunda sobre fatos imaginários, mas
as duas são construções verbais. (WEINHARDT. 2002. pg. 106).
Portanto, o historiador é
também um construtor verbal e todo “construto verbal é reconhecido como
simulacro que não se confunde com o fato” (WEINHARDT. 2002. pg. 107). Isso
significa que a produção historiográfica não é o fato, é uma representação,
assim como a ficção literária. Northrop Frye publicou um ensaio, no início da
década de 60, “em que define o escritor de criação como meta-historiador, cujo
trabalho é dedutivo, impondo uma forma a seu objeto, em função da qual o
escolhe, enquanto o método do historiador é indutivo, a forma sucedendo a
pesquisa” (WEINHARDT. 2002. pg. 107).
Ora, é justamente o
processo indutivo, que se constrói através dos indícios que são coletados
durante a pesquisa, que permite a elaboração de um texto histórico. Em minha
pesquisa sobre a batalha do Jenipapo, e nas oportunidades quando pude falar
sobre isso, chamei esses elementos que definem a forma do texto após a pesquisa,
que variam desde indícios, vestígios, evidências, documentos ou fatos, de “espinha
dorsal da narrativa”.
Não se trata de dedução
intuitiva todos os arranjos no quadrinho Foices
& Facões que levaram o major Fidié a encontrar a resistência organizada
no dia 13 de março de 1823. Esses “arranjos” na verdade são os fatos históricos
que pontuam na narrativa literária tal qual vértebras sustentam um corpo
humano, e esta narrativa é friccionada e ficcionada e a partir de uma linguagem
literária rica dos mais variados recursos estéticos.
O
que importa aqui é entender como esses recursos estéticos contribuem para a
construção histórica, pois “não se trata de propor a ficção como sucedâneo ou
como concorrente da história, mas sim de observar de que forma e em que medida
a convergência dos estudos históricos e literários pode contribuir para revelar
e desvelar mecanismos da criação artística” (WEINHARDT. 2002. pg. 110). Em meu
quadrinho sobre a batalha do Jenipapo, criei personagens para poder melhor
abordar questionamentos populares que poderiam ocupar a mente dos homens
“comuns”[4] que participaram da luta
armada. Quem eram esses anônimos? O que pensavam? Porque decidiram participar
da batalha? Não existem muitos indícios sobre isso porque os registros que há
são os relatos oficiais da província e das figuras tratadas como baluartes do
movimento e, por isso, Foices &
Facões aparece como uma leitura que “nos faz questionar como outros
sujeitos vivenciaram o chamado para a guerra” (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.13).
A criação artística me permitiu sintetizar algo que existe para além desses
documentos oficiais:
Talvez enquanto os
outros busquem construções epistemológicas, nós nos empenhemos em descobrir um
fugidio passado que nos explique e justifique. Na busca da impossível
descoberta, do resgate interdito, o passado é moldado, ainda que também, e
sempre, provisoriamente. Tzvetan Todorov diz que o europeu encontrou o eu na descoberta e no reconhecimento do
outro, ou seja, do habitante da América. O nosso outro talvez seja o
antepassado. É preciso encontrá-lo, ainda que ficcionalmente (WEINHARDT. 2002,
p. 110).
Deveria ser inevitável,
para qualquer narrador de uma ficção histórica, essa busca pelos indivíduos,
pelas mentalidades e pela vivência, por isso, é tão importante para nós,
narradores, essa virada que a história cultural proporcionou (ou sofreu) ao
longo do século XX. As ficções históricas buscam, por uma questão de princípio,
compreender os protagonistas de suas narrativas. E é nesse sentido de
“compreensão” que existe uma busca de reconhecimento identitário, uma procura
do nosso “outro” no passado que construímos.
Johny Santana Araújo
disse que Foices & Facões
“ajuda-nos a compreender a construção de símbolos e mitos para a manutenção da
moral dos combatentes e dos cidadãos; a conformação de identidades nacionais e
regionais; entre outras tantas questões desenvolvidas” (ARAÚJO. In AURÉLIO.
2018, p.13). No meu quadrinho, pude buscar o eu a partir do nosso outro,
entender nosso antepassado piauiense e reconhecer certa construção mitológica
que existe acerca de um sertanejo aguerrido, e, para isso, precisei criar
Teobaldo: um vaqueiro que se encontra diante do impasse entre permanecer na sua
vida bucólica da fazenda ou participar da luta armada, relato este que não existe
na historiografia piauiense deste momento histórico, apenas na ficção
artística.
Lawrence Stone, em
texto datado de 1979, rastreia os momentos e movimentos dos estudos históricos,
destacando as diferentes metodologias da abordagem científica e centrando
atenção nas causas do ressurgimento da narrativa na prática do historiador.
Identifica o auxílio da antropologia e situa a Mentalité entre os estudos históricos, entendendo esse
movimento como uma busca do indivíduo. Observa que um “número cada vez maior de
'novos historiadores' tentava então descobrir o que se passava na cabeça das
pessoas do passado, e como era viver naqueles tempos, questões estas que
reconduzem inevitavelmente aos usos da narrativa” (WEINHARDT. 2002. pg. 110 -
111).
Nesta busca pelo que se
passa na cabeça das pessoas do passado é que o narrador procura justificar sua
ficção histórica. No caso de Foices &
Facões, o que mais me inquietava era compreender como se desenhou na mente
daquelas pessoas os fatos que levaram à batalha, como eles interpretaram o que
viam, como se angustiaram, já que não deixaram registros que chegassem até nós
explicando o que sentiram. Era preciso interpretar essas pessoas, na
perspectiva do termo alemão zeitgeist,
que significa compreender o espírito do tempo para imaginar como aquele momento
interferia no cotidiano daquelas pessoas.
A narrativa ficcional me
permitiu elaborar um drama crível de um núcleo familiar que vivia em uma
fazenda e que assistiu, da varanda de sua casa, o desenrolar dos fatos e a marcha
de quase 2 mil soldados que saíram de Oeiras em direção à Parnaíba.
Este núcleo é formado por
um vaqueiro, Teobaldo, sua irmã e sobrinhos. Há também um fazendeiro português,
Januário, sua esposa e filhos, bem como sua escrava. À medida que os fatos são
apresentados no quadrinho, os personagens reagiam a eles e essa reação é
claramente inventada, ficcionada, nem por isso mentirosa. A cerca desse ponto,
Johny Santana Araújo, disse:
A proposta de
Bernardo Aurélio tem sido inovadora, levando-se em consideração que se trata de
desnovelar uma história que insistentemente tem se tentado manter no limbo,
esquecida no munturo da história oitocentista do Brasil. Os autores, através de
seus desenhos, tentam dar vez àqueles que tiveram sua voz emudecida pelo tempo
ou pela operação historiográfica a que estiveram sujeitos ao longo dos anos (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.11).
A voz de Teobaldo e dos
demais personagens do quadrinho encontra eco na historiografia, mesmo que seja
uma voz emudecida pela operação historiográfica, portanto, apesar de ser obra
de ficção, o sentimento que ronda os personagens é histórico, isso porque “hoje
podemos, através da ciência da História, perscrutar os espaços esquecidos, uma
história vista de baixo, e observar os ditos e não ditos e com o inovador
trabalho em Foices & Facões, pode
se contemplar, visualmente, um caminho dessa história tão multifacetada” (ARAÚJO.
In AURÉLIO. 2018, p.11). Entretanto, a prática da ficção
histórica, por vezes, é mais que esquadrinhar espaços esquecidos, pode ser
entendida como o preenchimento de espaços vazios:
Eis uma teoria
sobre a qual, há algumas décadas, apressadamente poder-se-ia pensar que se
digitou historiador por escritor de ficção. Paul Veyne percebe o parentesco,
tanto que afirma ser a crítica literária o termo de comparação para a teoria da
história. Por mais que se disponha de documentação, explica Veyne, o trabalho
do historiador está sujeito à causalidade e à retrodição. Este último termo,
emprestado da teoria das probabilidades, designa uma operação de preenchimento,
que se realiza por hipóteses (WEINHARDT. 2002. pg. 113).
Quando o autor consegue
jogar luz sobre espaços esquecidos e, no caso de Foices & Facões, esse espaço é entender o sentimento dos homens
comuns que viviam aquele tumultuado momento de levantes independentes, ele está
contribuindo para o discurso científico, histórico. Acontece que quando fazemos
isso com arte, nós contribuímos, sobremaneira, para um processo de elaboração
de identidade, pois construímos o nosso eu
a partir do nosso outro, o
antepassado, mesmo que ficcionalmente.
E nesse processo de
construção do antepassado e de consequente reconhecimento entre leitor e obra,
que uma ficção histórica proporciona, é que está a riqueza que uma história,
autodeclarada, isenta e sem paixões, dificilmente ofereceria. É, justamente, na
natureza dessa identificação com os personagens, da junção entre operação de
uma prática científica e arte (elaborada com declarada subjetividade, que não
deveria mais assustar nenhum historiador), que reside o fausto da ficção
histórica, isso porque o processo de escrita histórica influenciada pela
plasticidade artístico-literária pode facilitar um entrosamento entre leitor e
obra simplesmente porque o ser humano, de maneira geral, gosta de consumir e de
se envolver com arte.
Johny Santana Araújo disse que Foices & Facões:
(...) propõe um
passeio surpreendente e diferente, nos levando a uma viagem fantástica aos
rincões do interior do Norte do Piauí de 1823 e permiti-nos sentir o calor e as
emoções vividas pelo povo do Piauí tal como a proposta de Jules Michelet que
nos convidou viver a história da França e da sua Revolução de 1789 e se
transportar para dentro dela” (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.14).
Foices & Facões, assim como outras obras
de ficção histórica, nos convida a experienciar sentimentos antigos, a reviver a vida da alma popular
semelhante à forma que Jules Michelet ou Capistrano de Abreu se permitiram
investigar o espírito do tempo.
Existe, então, o historiador que sabe utilizar de uma
linguagem envolvente que aprendeu com recursos estilísticos literários e
existem artistas que se utilizam de técnicas historiográficas para produzir uma
obra. Não é raro, entretanto, existirem autores como eu, que trabalho com arte
e tenho formação como historiador, o que me permite dialogar sem grandes
problemas entre essas duas matrizes e produzir uma obra artística com o devido
cuidado que o discurso histórico necessita.
4. Por que fazer ficção histórica?
Arte consegue envolver o
espectador de uma forma que, normalmente, a linguagem científica não é
bem-sucedida. É muito comum que programas educativos utilizem de recursos
artísticos ou específicos da comunicação para atrair o grande público[5].
Uma das explicações que
justificam o envolvimento da arte com sua audiência é o processo de
identificação que acontece entre o público e ela. É importante colocar que,
dentro de um texto histórico, esse processo de identificação se dá mais pelo
conteúdo da obra do que pelo reconhecimento do autor:
Entre os rastros
do passado e sua representação no presente, existe uma série de elementos
extratextuais tais como, a ideologia, a linguagem, as preferências pessoais e
as discussões historiográficas, que impossibilitam uma imparcialidade e
objetividade. Contudo, para o método formalista proposto por White são
relevantes apenas os aspectos internos às obras, como enredo, argumento e
ideologia. Portanto, a análise da vida pessoal do escritor, seu contexto social
específico e seus escritos passados não são necessários (WHITE, 2001). Sua
vantagem interpretativa é mostrar que a linguagem cria significados sejam eles
criados conscientemente ou não pelo historiador (ALMEIDA, 2016, p.206).
Então, caso alguém estude
o Foices & Facões, minha vida
privada não seria, a princípio, objeto de curiosidade, pois é possível
averiguar os aspectos internos desta obra sem ser necessária a compreensão de
detalhes da minha vida. Entretanto, esta identificação com qualquer obra de
arte se dá por vários outros motivos e um deles é justamente a subjetividade da
obra, que pode vir carregada de ideologias que refletem o posicionamento do seu
autor. É essa capacidade que a arte tem de falar de si que permite uma
identificação com seu leitor no momento em que ele pode si reconhecer durante a
leitura, concordar ou discordar de elementos abordados ali, criar empatia com o
que está consumindo e, por consequência, perceber que ou se engajou com a obra
(ou contra a obra) ou está até se entretendo com ela.
No prefácio que o Dr. Johny Santana Araújo fez para Foices
& Facões, ao se referir a Jules Michelet, explica o quanto este autor
estava envolvido com a relação entre história e ficção, trata-se de um
romântico que “criou uma narrativa que convidava o leitor a vivenciar as
realidades dos sujeitos históricos através de sua narrativa, proporcionando uma
experiência de empatia com esses sujeitos” (ARAÚJO apud AURÉLIO. 2018, p.14). A
empatia pode ser uma poderosa arma para todo tipo de informação, pois é capaz
de cativar um público ou aumentar o número de consumidores, e a história, como
qualquer área do conhecimento, quer ser lida cada vez mais.
Para a história ser mais consumida, precisa ser mais
acessível, mas não vamos nos confundir aqui! Há uma infinidade de títulos sobre
história disponíveis em bibliotecas físicas e digitais, incontáveis sites,
artigos, informação em toda parte. O acesso ao conteúdo da história é muito
fácil hoje, mas a acessibilidade a que me refiro é de outro viés:
Tornar-se
acessível a um público inteligente, “mas não especialista” é outra das razões
que aponta para a volta da narrativa. O mesmo raciocínio talvez se pudesse
aplicar à ficção. O público de best-sellers (...) é significativo, em
termos de mercado brasileiro, a julgar pelas tiragens, sobretudo de traduções.
Por que não conquistá-lo? É nesse rumo a proposta de José Paulo Paes, que
atribui, em parte, aos rigores da crítica, aparelhada exclusivamente para a
avaliação da literatura erudita, a inexistência de uma literatura de
entretenimento no Brasil (WEINHARDT. 2002. pg. 111).
A ficção histórica pode buscar no entretenimento os
mecanismos de sedução e de convencimento de novos públicos. É essa
acessibilidade que os best-sellers possuem, esse engajamento junto ao
grande público que essas obras dispõem, que o autor de ficção histórica deve
almejar. É fazer história, com todo o rigor que ela exige, afinal não se pode
anatematizar “indiscriminadamente todos os esforços metodológicos que
intentaram dar aparato e estatuto científicos aos estudos históricos” (WEINHARDT.
2002. pg. 111),
mas
buscando, sempre, entreter o leitor[6].
O mercado de literatura brasileira de entretenimento
praticamente inexiste, é muito pequeno diante dos grandes best-sellers
da literatura estrangeira que ocupam nossas prateleiras, e a dura verdade é que
a história brasileira não é bem refletida na cultura de consumo de massa ou não
tem vez diante da sedução de produtos históricos e culturais estrangeiros que
nos influencia a todo instante, com filmes, livros, jogos etc. Isso se reflete
diretamente no cotidiano de sala de aula:
Às vezes é
frustrante reconhecer, mas parece interessa-lhes mais saber sobre um
acontecimento que aparece num jogo eletrônico do que de temas que o professor
bem-intencionado traz para a aula supondo serem mais próximos das experiências
dos alunos. Talvez seja por isso que em algumas ocasiões pude constatar a
preferência dos jovens por aulas sobre temas relacionados à “História Geral” –
para adotar uma nomenclatura usual no Brasil – e considerem a “História do
Brasil” entediante, por comparação. Com o estudante de maior idade – refiro-me
ao estudante dos programas de alfabetização de jovens e adultos (EJA) – ocorre
o contrário, talvez porque para ele as novelas nacionais são as referências
mais comuns. Ainda assim, sua imaginação também não está livre dessas
referências romanceadas sobre o passado” (BARBOSA. 2016, p. 21).
As
versões romanceadas da história sempre parecem mais atraentes para o grande
público, para aquele não especialista, aquele que está mais familiarizado com
grandes épicos estrangeiros do que com a história do seu próprio país. Esse
público é envolvido e seduzido pelos mais variados discursos que existem na
cultura do entretenimento de massa que vem de fora e que sabe se utilizar da
história para fixar um lugar no gosto e na vida das pessoas. Esses grandes best-sellers
da literatura, grandes filmes, grandes narrativas estrangeiras ocupam um espaço
na mídia que se reflete no gosto dos consumidores da sala de aula e faz com que
esses alunos achem que história do Brasil é chata em comparação às outras.
A
história pode e deve buscar inspiração na literatura para atingir patamares,
acesso ou aceitação de best-sellers.
Utilizar a forma literária, artística, para narrar fatos históricos permite à
história tornar-se um produto mais atraente, criando afeição, interesse e
referência. É por isso que na dissertação de Alexandre Rodrigues de Frias
Barbosa ele afirma que a maioria dos alunos de ensino médio apresentam mais
interesse pela História Geral do que pela História do Brasil, isso porque o
Egito antigo ou a Europa das grandes guerras tornam-se muito mais atraentes pois
são objetos de grandes romantizações, por serem produto de entretenimento mais
bem-sucedido do que a história do Brasil jamais fora.
Transformar
a história do Brasil em arte é parte necessária para estimular maior carisma do
grande público por sua própria identidade. Por isso que Foices & Facões:
A Batalha do Jenipapo, mais que um trabalho sobre história, é um convite
para conhecer e se envolver com esses personagens que representam os
sentimentos de seu tempo e que pode fazer com o leitor permita-se apaixonar-se
por sua história.
5. A Batalha do Jenipapo: versões e
ficções
Quando
um autor constrói um produto como Foices & Facões ele está submetido
a críticas tanto de historiados quanto de leitores de quadrinhos e nesta última
categoria se incluem tanto os leitores esporádicos e autores de obras
semelhantes quanto especialistas na área. Existem muitos vieses a serem
abordados por estas críticas, que envolve, por exemplo: 1) exatidão histórica e;
2) qualidade artística. Por motivos óbvios, pois sou o autor, não vou traçar
aqui nenhum comentário acerca deste segundo viés, entretanto, cabe neste
momento alguns levantamentos acerca das minhas escolhas em caráter de narrativa
histórica.
É importante
entendermos que “a verossimilhança da ficção não é a mesma da história. Para
esta, é verossímil o que se constrói como verdade, enquanto para aquela basta
que pareça verdadeiro. O ponto axial da questão gira então em torno
da acepção de verdade” (WEINHARDT. 2002, p.119). Foices & Facões
trata-se de uma obra que parece verdadeira, justamente porque possui um
arcabouço teórico e uma base de fontes e documentos oficiais, que são fruto de minha
formação e pesquisa enquanto historiador, porém, meu quadrinho não pode ser
entendido como verdade, justamente porque existem inúmeros personagens
fictícios e interpretações subjetivas dos fatos[7].
Mesmo com todos os
recursos linguísticos e artísticos que um quadrinho oferece, Foices &
Facões possui uma produção de corpus
documental que pode identificá-lo como uma pesquisa histórica. Certos diálogos
não estão ali presentes à toa, não são oriundos de pura fantasia criativa. Existem
passagens no quadrinho, trechos com diálogos ou leituras de documentos que são
citações reais ou diretamente inspiradas em informações primárias da história.
Algumas delas estão abordadas ao longo das 21 notas explicativas que existem no
quadrinho e não posso aqui me estender sobre cada uma delas. Por isso, vou me
debruçar sobre passagens de um personagem que temos no quadrinho: o major Fidié,
e uma das fontes que mais deram corpo ao
quadrinho é justamente um texto fruto de seu testemunho ocular desta história:
Não
tendo eu pedido aquelle Governo, e sendo só devida a minha nomeação á lembrança
de Sua Magestade o sr. D. João 6º, (…) parti immediatamente, por ser essa a
vontade do mesmo Augusto Sr. ordenando que o commandante da Charrua Gentil
Americana me recebesse a seu bordo (…) Na ocasião da minha partida, Sua
Magestade me ordenou muito positivamente, que me mantivesse, dizendo-me:
Mantenha-se! Mantenha-se! (…) E quando pouco depois de ter chegado á cidade de
Oeiras do Piauhy, me constou da revolta da Villa da Parnahiba (…) Declarei ao
Governo Civil da Provincia, que marchava contra aquella Villa, e que em quanto
tivesse quatro homens que me obedecessem, o terreno que elles pisassem seria
constitucional, e pertenceria ao Reino (FIDIÉ, 2010, p. 159 -160).
Este
pequeno trecho narrado pelo major em seu livro Vária Fortuna de um soldado
Português permitiu que eu imaginasse várias cenas do quadrinho, mas não
apenas isso. A passagem sugere o temperamento do major e a obstinação com que
fez a guerra no Piauí e Maranhão naquele primeiro ano após a proclamação da
independência. O major descreve como teria sido seu encontro do Dom João VI e
até relata palavras ditas pelo próprio imperador: “Mantenha-se!” e
“mantenha-se!”, reiterando a ordem. Não pude me abster desta cena (figura 01) e
a incluí no quadrinho após toda a passagem que explicava os motivos de
recolonização portuguesa no nordeste brasileiro, dito pelo próprio Dom João VI.
Na sequência, temos o trecho em que
Fidié diz que “em quanto tivesse quatro homens que me obedecessem, o terreno
que elles pisassem seria constitucional, e pertenceria ao Reino”, o que revela
bastante da natureza do personagem que eu construi. A partir deste trecho, decidi
que Fidié deveria ser entendido como um homem muito obstinado, honrado, e que
levaria até às últimas consequências as ordens que recebera diretamente de Dom
João VI. E os documentos mostram que assim o fez, mesmo sofrendo duro sítio dos
independentes em Caxias e com membros da corte maranhense preparando a
capitulação (CHAVES. 1998, p.383), o major português ainda liderou investidas
contra as tropas brasileiras que o tentava derrotar, como revela Monsenhor
Chaves:
Àquela
hora a situação na Vila era realmente insustentável. Já não havia água nem
comida. Há dias que os combatentes recebiam meia ração. Mesmo assim, o que
restava não daria mais para três dias.
Fidié
era obstinado. Queria a resistência a todo custo. Ainda possuía alguma munição.
Só não tinha mais comida. Mas a Câmara também se obstinou. Não era mais
possível continuar com uma resistência inútil, com sacrifício total da
população civil às portas da morte pela fome. Vendo-se sozinho, Fidié
demitiu-se, passando o Comando ao Tenente-coronel Luís Manoel de Mesquita. Este
era partidário das negociações.
No
dia 28 um parlamentário de Mesquita chegou ao Quartel General dos
independentes, no Bonfim. Trazia ofício do Comandante de Caxias, no qual ele
pedia que ambas as partes nomeassem seus representantes que se reuniriam para
discutir os termos de capitulação.
Nesse
tempo, Fidié cometeu uma traição ao Comandante Mesquita. Aproveitando a trégua
de cessar-fogo de ambos os lados, mandou alguns de seus fanáticos, que não eram
poucos, às roças da Olaria e eles voltaram trazendo muita farinha e água. No
reduto do Monte das Tabocas a trégua estava sendo aproveitada para o conserto
de armas e restauração do entrincheiramento danificado pelos últimos ataques (CHAVES.
1998, p.397).
Isto
está nas fontes históricas e no meu quadrinho. Cito a demissão do Fidié, a
capitulação proposta pelo Tenente-coronel Mesquita e a nova investida, tudo
seguindo a pesquisa minuciosa elaborada pelo Monsenhor Chaves (figura 02). No gibi,
a cena se passa numa conversa entre o Major Fidié e o soldado Luís, que se
trata de um personagem fictício, que inventei para criar certo drama shakesperano[8]
na estória. A conversa se dá entre um personagem real, que foi recriado segundo
minhas interpretações, e outro personagem que é inteiramente fruto de minha
imaginação. Entretanto, a conversa entre eles é verossímil porque apresenta uma
base fidedigna de informações. É isso que define meu quadrinho como uma ficção
histórica.
Existe outra passagem que pode ser considera demasiado
romântica, ou mesmo despercebida, por ser muito breve, que acontece na página
184 do quadrinho (figura 03), onde vemos o major Fidié liderando uma investida
contra os independentes. O fato é que a cena foi construída seguindo indicação
do Monsenhor Chaves que disse que “na tarde do dia 19 (de julho de 1823), o
próprio Fidié comandou as tropas atacantes. Mas foram repelidos, deixando 9
mortos no campo e conduzindo 67 feridos” (1998, p. 395).
Outra cena que pode
passar sem qualquer destaque é a que se dá no dia 10 de abril de 1823, após a
batalha do Jenipapo, quando Fidié ainda está aquartelado em terras piauienses e
precisa de carne para alimentar suas tropas. Segundo Monsenhor Chaves, soldados
de Fidié “conduziam 109 cabeças de gado quando caiu sobre eles o Tenente
Simplício desbaratando-os e tomando-lhes a presa preciosa. Os portugueses
deixaram 12 mortos, 3 feridos e 4 prisioneiros” (1998, p. 157). Esta passagem
está no meu quadrinho e, na cena seguinte, vemos Fidié repreender seus soldados
derrotados, em um dos poucos acessos de cólera que o personagem demonstrou em
meu quadrinho (AURÉLIO. 2018, p. 179, 180 e 182). E ele só reage desta maneira
porque eram homens e alimento extremamente importantes. A falta deste gado foi
uma das causas que o fizeram abandonar a margem piauiense do rio Parnaíba e
ingressar no Maranhão, o que simboliza o início, de fato, de sua derrota, pois
“soube-se que dos 75 homens da expedição apenas 30 atravessaram o rio (...)
para o Fidié. Os outros, possivelmente desertaram. Esta derrota apressou a ida
de Fidié para Caxias” (1998, p. 328).
Todas essas passagens reforçam a impressão sobre
o major que tive ao ler sua declaração em Vária
Fortuna de um Soldado Português, que me fez enxergar no lusitano não um sanguinário
carrasco, algoz da liberdade brasileira, como normalmente tenta-se pintar sua
figura, mas me permitiu construir uma personalidade moldada na honra e
hierarquia militar de um homem que estava seguindo ordens diretas de seu
imperador. Essa é a minha versão de Fidié nesta ficção histórica.
Existem outras passagens ou
personagens ao longo do quadrinho que possuem registros históricos, como o
“capitão” Vicente Bezerra que aproveitou-se da situação de balbúrdia em Campo
Maior para saquear portugueses (como, por exemplo, o compadre Manoel Rosa, que
é citado na página 105 do gibi) em nome da causa brasileira, ou os irmãos
Joaquim e Salvador Bento que organizaram milícia para participar da batalha do
Jenipapo, ou a prisão de padre Manoel e dos irmãos Pereira e Vitório, em Campo
Maior, a mando de Leonardo Castelo Branco e várias outras cenas, todas
encontram respaldo em fontes históricas. Entretanto, quero ainda esclarecer
dois pontos que podem causar estranhamentos por se tratarem de liberdades
poéticas que um historiador deve lidar com muita cautela: a tomada da Casa da Pólvora
em Oeiras e o dia da proclamação independência.
No meu gibi, decidi
utilizar uma leitura parecida com a de Pedro Américo em seu famoso quadro Independência ou Morte, decisão esta
que, definitivamente, não enche de orgulho meu lado historiador e que apenas me
satisfaz a veia artística. Isso porque, existem registros oculares de que tanto
Dom Pedro, no dia da proclamação, quanto a comitiva que o acompanhava, não
estariam trajando vestes de galas, não montariam cavalos de guerra, mas “um
asno baio” (jumento de carga), animais mais propícios para o trajeto que faziam
às margens do rio Ipiranga e que o imperador estaria sofrendo de problema
intestinal (SCHLICHTA. 2009, p.4).
Todas
essas informações permitiriam a qualquer historiador pintar um quadro sobre o 7
de setembro de 1822 completamente diferente daquele de Pedro Américo,
entretanto, me permiti fazer uma versão mais romântica e ignorar esses indícios
históricos, isso porque, tanto o quadro quanto meu quadrinho escolheram narrar
os fatos escondendo elementos pouco heroicos ou cômicos que não dialogariam com
nossa obra. Vejam o que o autor da pintura disse sobre seu próprio trabalho:
A
realidade inspira, e não escraviza o pintor. Inspira-o aquillo que ella encerra
digno de ser offerecido a contemplação publica, mas não o escraviza o quanto
encobre contrario aos designios da arte, os quaes muitas vezes coincidem com os
designios da historia. E se o historiador afasta dos seus quadros todos os
incidentes perturbadores da clareza das suas lições e da magnitude dos seus
fins, com muito mais razão o faz o artista, que procede dominado pela idea de
impressão esthetica que deverá produzir no espectador. [...] Finalmente,
comparando as tradições, as chronicas, as passagens historicas, os dictos e
presumções individuaes, os testemunhos artisticos e as diferentes opiniões
acerca do successo "que fez estremecerem de jubilo as margens do
Ypiranga", consegui compor a fraca obra que agora submetto ao benevolo
juizo das pessoas illustradas do meu paiz; certo de que, se não acertei, ao
menos esforcei-me por ser sincero reproductor das faces essenciaes do facto,
sem esquecer totalmente as difficeis e severas lições da sciencia do bello. (AMÉRICO
apud SCHLICHTA. 2009, p.4)
Não conseguiria explicar
melhor: os desígnios da arte, de fato, podem coincidir com os da história e
isto se dá, basicamente, por causa de uma busca por certa impressão estética. Se
estivesse procurando fazer um quadrinho cômico, seguir fielmente o que diz os
indícios históricos era o caminho mais fácil, entretanto, o drama que queria
compor é completamente incompatível com a provável disenteria do imperador.
Sim! Trata-se de uma escolha, trata-se de uma versão, mas ao menos me esforcei
para ser sincero criador da cena, afastando do quadro “todos os incidentes
perturbadores”, e digo isso não sem certa ironia, como, provavelmente, não o
fez o ilustre artista Pedro Américo.
Quero citar ainda uma
passagem curiosa dessa história da independência do Brasil no Piauí e minhas
escolhas narrativas diante do acontecido: Em 13 de dezembro de 1822, seis
semanas antes do dia 24 de janeiro de 1823, em que Oeiras adere à independência
de Dom Pedro, aconteceu um assalto à Casa da Pólvora daquela vila, local onde
eram guardadas, principalmente, armas e munições para serem utilizadas pelas
forças militares da província. Naquela ocasião, o major Fidié já estava muito
longe de Oeiras, aproximando-se da Vila da Parnaíba, a cerca de 660km ao norte
do Estado, onde chegaria apenas a 18 de dezembro de 1822.
Oeiras estava
praticamente desguarnecida e Fidié acreditava que a Capital era fiel ao governo
português e que jamais o trairia como fez naquele 24 de janeiro. O assalto, de
fato, aconteceu e está documentado. Abdias Neves nos informa que às 2 horas da
madrugada, seis homens encapuzados atacaram a Casa da Pólvora e que surraram à
chibatadas os guardas do local (2006, p.80). Monsenhor Chaves nos informa,
entre outras coisas interessantes, que a ousadia foi durante o dia:
Às
14 horas de 13 de dezembro, (...) seis homens encapuzados surpreenderam a
guarda da Casa da Pólvora, tomaram-lhe as armas e surraram-na a chibata.
Ninguém acudiu aos guardas. Abriram-se devassas, mas tudo ficou envolto em
mistério.
A muito
custo e depois de alguns sermões incendiários do Vigário Colado, Padre Dr. José
Joaquim Monteiro de carvalho e Oliveira, as autoridades resolveram reunir-se a
29 de dezembro para algumas deliberações, que acabaram se resumindo a uma só:
recomendar ao Comandante da Guarnição que tivesse a tropa de prontidão para o que pudesse suceder (1998, p.
283).
Preferi seguir a
indicação de Abdias Neves e fiz com que a cena se passasse durante a noite. A
escuridão é muito mais interessante para um cenário desses. Trata-se,
novamente, de uma escolha estética, mas minha versão para o assalto vai um
pouco mais além do simples horário e foi essa citação de Monsenhor Chaves que
me permitiu conjecturar o possível mandante do crime, já que tudo permanecia
envolto em mistério e ainda hoje não se sabe quem são, de fato, os culpados.
Segundo o autor, o acontecido na Casa da Pólvora deixou as autoridades da vila apreensivas,
portanto reuniram-se, determinando que permanecessem de prontidão, preparados
para qualquer coisa que pudesse acontecer. Isso indica que havia suspeitas de
que aquele ataque não foi desarticulado de outras intenções e que poderia estar
ligado aos interesses dos separatistas.
Além do espancamento dos
soldados da Casa da Pólvora, muitas armas e munição foram roubadas, mas não se sabe
quem fez o assalto ou quem foi o mandante. Não se sabe se alguém foi
incriminado ou punido. Não existem registros precisos sobre isso, entretanto,
no meu quadrinho, há. Me permiti dar um rosto e nome para o homem que guiou seu
bando e, assim, fizeram o roubo. Este homem é fruto de minha imaginação:
chama-se Timótio.
Timótio é um desses personagens
figurantes, de poucas participações, e que pode acabar sendo ignorado no
conjunto da obra. Ele aparece em apenas 3 momentos: 1) entregando um bilhete
para Manoel de Sousa Martins que informava sobre a adesão de Parnaíba à
independência, que aconteceu em 19 de outubro de 1822; 2) no assalto à Casa da
Pólvora; e 3) no golpe oeirense de 24 de janeiro de 1823, recebendo ordens de
Manoel de Sousa Martins. Neste terceiro momento, Manoel diz, explicando a todos
os seus companheiros como se dará a ação que permitirá a adesão de Oeiras à
independência: “...enquanto o major Clementino tomará a Casa da Pólvora e a
manterá em segurança. Para isso, todos poderão contar com a ajuda de Timótio e
alguns homens de confiança dele, que estão preparados e municiados” (AURÉLIO.
2018, p.89). O segredo aí está em “preparados e municiados”.
Na minha versão, Timótio
é um jagunço que age sorrateiramente pela vila, sob os mandos de Manoel de
Sousa Martins. Ele é o homem que assalta a Casa da Pólvora, logo, minha
intenção era ligar este acontecido a uma autoria intelectual do próprio
Manoel. Tudo deveria ficar mais claro
quando Timótio volta à Casa da Pólvora no dia 24 de janeiro, agora,
ironicamente, mais preparado e municiado com as armas que ele próprio roubou no
dia 13 de dezembro, segundo meu gibi, claro. Assim, semanas depois, o assalto
serviu para armar os independentes para o golpe da adesão daquela vila à independência.
Abdias Neves também nos
informa que no dia 24 de janeiro de 1823, Manoel e seu irmão Joaquim de Sousa
Martins reuniram empregados, jagunços e vários companheiros para tratarem da
tomada do poder (2006, p. 95 – 96), tudo isso indica para mim que Timótio, ou
outro personagem real de fato culpado pelo assalto à Casa da Pólvora, poderia
sim estar ali junto a Manoel de Sousa Martins e entre aqueles homens que
tramaram a tomada do poder.
E foi assim que pude
criar versões e ficções da história da batalha do Jenipapo e do processo de
independência do Brasil no Piauí, com a ajuda criativa de recursos históricos,
que minha formação acadêmica me forneceu, bem como com a linguagem artística
das histórias em quadrinhos. Dessa maneira, produzi uma história em quadrinhos
que dialoga com o processo de pesquisa histórica mas que se permite criar
personagens e interpretações que não são bem claras à história.
Neste percurso existe,
entretanto, uma diferença entre a ficção histórica e a literatura histórica. A primeira,
é o ato de fazer histórica com método e práticas aceitas por seus pares, mas
que se entende como fruto de linguagens subjetivas a que o escrito está sempre
submetido. A segunda, é se permitir criar romanticamente, sendo, porém, um
sincero recriador desses fatos, vendo neles um auxílio para a construção de um roteiro
pontual, uma narrativa sustentada pela coluna vertebral dos acontecimentos. Foices & Facões é desse segundo
tipo.
6.
Conclusão: “A história é um romance real”.
Para concluirmos,
permitam-me retornar à nossa epígrafe escrita por Paul Veyne de que a história
se trata de um romance real. A afirmação nos cai bem justamente porque estamos
tratando de narrativas históricas a partir da análise de um texto escrito na
forma de quadrinhos, para ser mais exato: de um romance gráfico[9].
Foices
& Facões: A Batalha do Jenipapo também pode ser
entendida como um romance histórico na medida em que narra um fato,
sintetizando os tempos e selecionando temas, de uma maneira muito próximo como
fazem tanto a história como a literatura:
A história é uma
narrativa de eventos: todo o resto resulta disso. Já que é, à primeira vista,
uma narrativa, ela não faz reviver esses eventos, assim como, tampouco o faz o
romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador, não é o dos atores;
é uma narração, o que permite evitar alguns falsos problemas. Como o romance, a
história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa
página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória,
quando evocamos os dez últimos anos que vivemos (VEYNE apud MORAIS. 2018,
p.44).
Veyne nos permite
enxergar esse viés narrativista que flerta sem culpa com a linguagem literária,
colocando-nos na posição de contadores de história, não de atores. Ele nos diz
que não temos condições de reviver esses eventos, assim como é impossível para
a literatura oferecer essa experiência, mostrando-nos mais semelhanças ainda
entre o feitio historiográfico com a arte.
Essa capacidade de que um
século caiba em uma página nos traz à memória a obra de Capistrano de Abreu, Capítulos da História Colonial, que citamos no início deste texto. Sim! A síntese é
fundamental para a história e para a literatura. Selecionar, simplificar e
organizar o que precisa ser dito me parecem etapas claras do que fiz em meu Foices & Facões.
O historiador, desse modo, teria liberdade de escolha,
podia recortar o que pretendia expor ou omitir narrativamente no fito de
estabelecer a compreensão, pois o tempo pretérito, como também os
acontecimentos que o constituíram, não possuíam articulação precisa, lógica e
natural se não fosse pela trama/intriga urdida pelos sujeitos do conhecimento
histórico (MORAIS.
2018, p.45).
Evidentemente, a
realidade é complexa e a construção de uma narrativa coesa e precisa não é
simples, portanto, produzir um texto que represente um cenário real em todas as
suas multiplicidades de acontecimentos ou interpretações não é tarefa fácil. Na
verdade, um cenário real, em sua totalidade, é completamente inviável, entretanto,
cabe ao historiador, tanto quanto ao romancista, traduzir essas informações de
maneira articulada, precisa, lógica e natural de forma que se torne acessível
para o grande público. Esse é o poder da síntese.
Além da síntese, cabe aos
narradores saber que qualquer trama “não se organiza, necessariamente, em uma
sequência cronológica; como um drama interior, ela pode passar de um plano para
outro (...) como um corte transversal dos diferentes ritmos temporais” (VEYNE
apud MORAIS. 2018, p. 45) e isso me lembra, claramente, a parte 1 do meu
quadrinho, que começa com a chegada da família imperial portuguesa ao Brasil em
1808 e na página seguinte já é 1815, com a decisão do Brasil tornando-se Reino
Unido. Poucas páginas depois, nós temos o 7 de setembro de 1822 seguido do 13
de março de 1823, dia da batalha do jenipapo, onde faço uma ligação direta de
causa e efeito entre as duas datas. Mas o corte cronológico mais curioso é o
que se dá no início da parte 2, onde temos um retorno à data de 8 de agosto de
1822, dia em que o major Fidié chega, pela primeira vez, a Oeiras.
Esse tipo de controle do
tempo na narrativa, onde o narrador faz saltos temporais adiante e posteriores
ao que parece ser uma linha cronológica dos fatos é muito comum em todas as contações
de história, sejam filmes, quadrinhos ou literatura e serve como artifício para
entreter e fisgar os leitores. Controlar o tempo é ofício de todos os tipos de
narradores.
E tecer essa narrativa é
a operação do pesquisador, que decide onde e como dar o ponto, já que, na
realidade, essa colcha de retalhos não existe, quer dizer, a história é uma
construção sobre o tempo e não o tempo em si. Foice & Facões: A Batalha do Jenipapo é um crochê urdido sob
orientação dos fatos históricos, porém tecido sob minhas medidas, minhas
escolhas e meus pontos prediletos, portanto, talvez ele lhe sirva bem, talvez não.
Sim, a história é um
romance real, mas a realidade é articulada pelo narrador e, quando tratamos de
um romance gráfico que tem personagens e relatos que não aconteceram de fato, é
preciso traçar uma linha clara entre o que é história e o que é arte.
O vaqueiro Teobaldo e sua
família, da forma como narrados em meu gibi, estão entrelaçados nos nós da
narrativa da história do Piauí que eu construí e qualquer desavisado pode se
confundir entre o que é a interpretação dos fatos, a construção/ficção da
história, e o que é criação artística do autor. Quantos leitores do meu
quadrinho podem confundir um personagem real, de fato, com um fictício? Quantos
saberiam dizer, lendo Foices & Facões
pela primeira ou décima vez, que o português Januário é criação minha e que
Manoel Rosa, outro português assaltado pelo “capitão” Vicente Bezerra, existiu
realmente?
Como dissemos lá no
início de nosso texto, explicando as origens da história cultural, “a ideia de verdade em história
modificou-se porque o objeto da história se deslocou, porque a história passou
a se interessar menos pelos fatos que pelas relações” (DUBY. 1993, p. 59). Ou
seja, Januário pode não ser um personagem real, mas a relação que ele teve
contra o Vicente Bezerra e o medo que a personagem sentia diante de um ódio
crescente na vila de Campo Maior contra os lusitanos é real. O personagem não é
“verdade”, mas é verdadeiro na medida em que se realiza em suas relações com o
cenário real da história.
Não vou concluir aqui
oferecendo um manual sobre como ler ou produzir uma obra que flerta com a
verdade, mas permitam-me apenas duas sugestões: questione qualquer informação,
principalmente porque a história não é uma ciência exata, mas divirta-se com
ela.
Figura 1
Encontro de Fidié com Dom João VI, em Portugal.
|
Figura 01.
Figura 02
Figura 2
Cena da conversa sobre preparação de ataque de organizado por Fidié após o
início das conversas de capitulação (AURÉLIO, 2018, p.188).
Figura
3
Figura 3
Fidié liderando pessoalmente ataques contra os independentes, acontecimento que
segue indicações de fontes históricas.
BIBLIOGRAFIA
ALAMEIDA, Renata
Geraissati Castro de. Os limites entre a História e a Ficção.
Hist.
historiogr. Ouro preto. N. 22. Dezembro 2016. p. 202-213.
BARBOSA.
Alexandre Rodrigues de Frias. A narrativa como ensaio para aprendizagem da
História: arte e ficção na constituição do tempo e de si. Dissertação (Dissertação em história) –
UERJ. Rio de Janeiro. 2016.
BURKE, Peter. A
escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
CERTEAU, Michel. A
escrita da história. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
CHAVES,
Monsenhor. Obras Completas. Teresina:
Fundação Cultural Monsenhor Chaves. 1998.
DUBY, Georges. A
história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
FIDIÉ,
João José da Cunha. Vária Fortuna de um soldado Português. Teresina:
FUNDAPI. 2006.
MORAIS, Julierme. Reflexões sobre a narrativa histórica na
modernidade reflexiva. In: NERY, Emília Saraiva (Org). Teoria da história: articulações entre tempo, sociedade e cultura.
Teresina: Edufpi. 2018.
NEVES, Abdias. A guerra de Fidié. Coleção
Independência. Vol 1. Teresina: Fundapi. 4ª ed. 2006.
RODRIGUES. Jose Honório in: ABREU, Capistrano de. Capítulos
de História colonial. Sociedade Capistrano de Abreu. 5º ed. 1969.
SCHLICHTA, Consuelo Alcioni B. D. Independência
ou morte (1888), de pedro américo: a pintura histórica e a elaboração de uma
certidão visual para a nação.
ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009.
WEINHARDT, Marilene. Ficção e história:
retomada de um antigo diálogo. Revista Letras, Curitiba: Editora UFPR. n.
58, p. 105-120. jul./dez. 2002.
[1] Mestre
em História do Brasil e especialista em Artes Visuais, ambos pela Universidade
Federal do Piauí -UFPI.
[2]
O livro Foices & Facões: A Batalha do
Jenipapo é de minha própria autoria, junto com meu irmão Caio Oliveira, por
isso, de antemão, peço aqui que não entendam este trabalho com um autoelogio e
o observem como um relato pessoal que se deu no processo da fabricação do
discurso histórico nesta obra.
[3] SCHLEIERMACHER. On the
Different Methods of Translation. In: Willson, A. Leslie. German Romantic
Criticism. Continuum: 1982. Citação original: “In one sense every person is
restricted by language; things outside the realm of language cannot be
conceived clearly”.
[4] Sobre os “homens comuns”, refiro-me aos
trabalhadores livres, escravos, vaqueiros, roceiros etc. que participaram da
luta armada de 13 de março de 1823, em detrimento aos militares, políticos e
intelectuais que articularam a batalha do Jenipapo.
[5] Vide, por exemplo, o programa de tv Cosmos,
originalmente apresentado por Carl Sagan e que teve uma reformulação por Neil
deGrasse Tyson, ambos com um discurso popular e muito atraente. Neil deGrasse,
na sua versão do show, viaja pelo espaço sideral numa espaçonave que mais
parece saída de um episódio de Star Trekk.
[6] Existe, entretanto, matizes de
entretenimento que colocariam em posições muito afastadas da mesma escala
livros como A Guerra de Fidié, de Abdias Neves, e o meu Foices &
Facões. Ambas são obras sobre a batalha do Jenipapo, contudo, a primeira
possui linguagem acadêmica e a outra é um romance em história em quadrinhos que
procura entreter muito mais que informar. As duas, porém, devem buscar informar
e entreter.
[7]
É curioso ver o caso de
outro quadrinho, mundialmente famoso, que exige para si a categoria de
não-ficção: “O mesmo desconforto com relação ao esvaziamento da distinção entre
ficção e realidade é expresso por Art Spiegelman, que após ter sua obra Maus colocada na categoria de ficção, rebate
com tom de ironia, que não teria passado por árduos anos de pesquisa para
fundamentar o livro se soubesse que seria categorizado como ficção. Para
Dominick La Capra a obra de Spiegelman, que é tanto ‘uma obra completa de
memória e o duelo entre reconstrução histórica auto-etnográfica e arte’
(LACAPRA 2009, p. 205) são relevantes para se problematizar esta distinção
entre ficção e não ficção uma vez que estas categorias binárias não dão conta
das diversidades que permeiam a escrita” (ALMEIDA. 2016, p.209). Maus é uma
grande pesquisa histórica sobre a Segunda Guerra Mundial onde o autor relata as
memórias do pai, que sobreviveu aos campos de concentração nazista.
[8]
O soldado português Luis apaixona-se por Joana, piauiense e sobrinha de
Teobaldo. No quadrinho, sobre o romance deles desmorona ares de Romeu e Julieta porque a convivência
entre brasileiros e portugueses, os meus montecchios
e capuletos, estava muito belicosa
naquele período após o 7 de setembro de 1822.
[9]
“Romance Gráfico”, ou graphic novel, é
um termo criado pelo quadrinista Will Eisner para divulgar sua obra Um Contrato com Deus, lançada
originalmente em 1978. A expressão foi
utilizada com a intenção de valorizar quadrinhos que tivessem conteúdo e forma
mais parecidos com a literatura, procurando atingir novos públicos além de ser
melhor aceitos pela crítica.
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